PSEUO-INTELECTUALIDADE, PARANÓIA REACIONÁRIA E MITOMANIA NO CENTRO DO RODA-VIVA
Rodrigo Medina Zagni
Nesta segunda-feira, 2 de dezembro de 2013, o programa Roda Viva recebeu Lobão – ex-músico, polemista profissional, militante político de direita e colunista da Veja (esta última ocupação que, por si só, explica os outros dois ofícios!). Há cerca de dez anos, noticiar algo do tipo significaria claramente a ocorrência de um acalorado debate dada a tradição histórica desse importantíssimo programa da televisão brasileira; mas isso há dez anos! As coisas mudaram, e muito! O programa que já teve a frente nomes como Heródoto Barbeiro e Paulo Markun é conduzido hoje por Augusto Nunes, também colunista da Veja, hábil em socorrer seus pares em momentos de notório constrangimento e fiel obediente ao repertório ideológico deste segmento da mídia hegemônica que demoliu a histórica tradição crítica do programa que se esfacela junto de sua nave-mãe: a TV Cultura, entregue às estratégias do mercado televisivo.
Já no início da entrevista os termos são apresentados de forma bastante direta; para o confuso, vago e obtuso entrevistado a realidade é simples e se expressa da seguinte forma: enquanto ele “fala a verdade”, todos aqueles que dele discordam são “idiotas”, de Mano Brown – do grupo “Racionais MC’s” e para quem Lobão “age como uma puta para vender livros” - a Pablo Capilé, do coletivo “Fora do Eixo”. Lugar cômodo dos egóicos que não sabem lidar com a discordância, comum às sociedades plurais onde o confronto dialético de ideias é que produz um tipo vivo de conhecimento, não os monolitos – na forma de dogmas políticos e ideológicos -, com os quais Lobão interpreta toscamente um mundo complexo. Dada incapacidade, que beira a psicopatia, é que permite a produção de fenômenos de massa como o fascismo, doutrina que tem em Lobão um terno simpatizante.
O autor do livro “Manifesto do Nada na Terra do Nunca” (obra na qual um dos capítulos é dedicado a homenagem às posturas políticas de Nelson Rodrigues!), com ar blasée, confunde cronologias (dos momentos que antecederam o golpe de 1964) e até mesmo personagens históricos (confunde, por exemplo, Jânio com Jango!) a fim de desmoralizar governos como o de João Goulart que, no universo fantasioso que criou para si, articulava um golpe cubanizador do Estado brasileiro, “ameaça comunista” da qual teríamos sido salvos pelo que chamou de “Revolução de 1964” (designação comumente dada pelos militares para caracterizar o golpe que instaurou o regime que se estendeu de 1964 a 1985). Esclareço: o golpe civil-militar que empodeirou o mais truculento regime de exceção e que por meio da violência política (o que inclui torturas, estupros, desaparecimentos forçados e o morticínio da dissidência política) tratorou liberdades democráticas por longos e sangrentos 21 anos.
Chega a defender o golpe afirmando que, graças a ele nos safamos de “algo muito pior”, referindo-se aos regimes cubano, soviético e venezuelano, como se tivessem sido, na história, três experiências idênticas. Defensor ou crítico dessas três experiências gravissimamente distintas, qualquer indivíduo são escaparia a este entendimento grosseiro, por quantos pontos de contato pudessem ser identificados, isso porque as rasuras são imensas.
Na sua paranoia reacionária, João Goulart não foi deposto: ele fugiu! Como se o Senador Auro Soares de Moura Andrade, que presidiu a sessão de 1º de abril de 1964 declarando vaga a presidência da república com o presidente João Goulart em território nacional, não tivesse com isso dado início ao golpe na sua fase parlamentar (sim, foi assim que o golpe começou: como golpe civil!). Resistir ao golpe, ainda que apoiado por Leonel Brizola e pelas forças comandadas pelo general Ladário Telles a partir do Rio Grande do Sul, para onde se dirigiu Jango já no dia 2 de abril, significaria o inicio de uma guerra civil que não teria rápido desfecho.
“Por que ele não ficou?”, indaga Lobão como se fosse um aluno do pré-primário: o exílio no Uruguai foi o preço pago por Jango para que sua deposição não resultasse em derramamento de sangue. Enquanto na madrugada do dia 31 as tropas lideradas pelo General Olímpio Mourão Filho se deslocavam de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, a Marinha dos EUA, a frente da Operação Brother Sam, preparava-se para agir em prol dos militares em caso de guerra civil disponibilizando um porta-aviões, um encouraçado, um navio de transporte de tropas, um navio de transporte de helicópteros (com 50 unidades embarcadas), 25 aviões para transporte de armas, uma esquadrilha completa de aviação de caça e 100 toneladas de armas leves e munições. É o suficiente para dirimir-lhe a dúvida?
Constrangedor, até mesmo para os entrevistadores e para Augusto Nunes, que a todo tempo tinha que socorrê-lo a fim de evitar que as bobagens ditas fossem ainda mais exploradas pela bancada notadamente perplexa com o festival de sandices, dentre as quais sublinho a pérola de que a liberalização da maconha no Equador estaria sendo posposta para o fortalecimento das FARC’s, na Colômbia! Apesar de entender de substâncias entorpecentes, é notório o desconhecimento de Lobão acerca de uma economia política do tráfico internacional, tampouco da política interamericana e dos movimentos de luta armada que abriga.
Some-se a isso a informação de que a luta armada contra a ditadura, no Brasil, matava crianças! Imagino que aos montes! Talvez as tenham comigo, como fizeram os comunistas soviéticos!
No entanto, ele que se classifica como “ex-petista” não se diz de direita. Aliás, Lobão tem um notório problema de auto referência; alvo de baterias de latadas e garrafadas no Rock in Rio, o megalômano cantordeclara-se o inventor da cena independente da música brasileira enquanto o que fez, pura e simplesmente, foi criar uma revista que trazia, como brinde, um CD! Mas Lobão não é de direita, segundo ele mesmo diz! Favorável ao golpe de 1964, para quem Marighella, Lamarca e Che foram assassinos e “sórdidos psicopatas”, contrário à política de cotas raciais, contrário ao “programa Mais Médicos”, contrário aos programas sociais focados na redução da pobreza, contrário à meia-entrada para estudantes, para quem os protestos populares acabam com seu direito de ir e vir, defensor fervoroso do capitalismo (o que inclui, suponho, suas contradições e desigualdades), contrário ao que chama de “ditadura do politicamente correto” (que impede pessoas de exercerem a liberdade de serem racistas, homofóbicas, xenofóbicas, defenderem o bullying, de serem intolerantes, por exemplo) etc.
Notória confusão doutrinária ou incapacidade de ver a si mesmo para além da região do umbigo?
Ah, sei... Lobão é neutro, tal qual a Veja...
A propósito, para seu mais novo colega de ofício na revista, Rodrigo Constantino, blogueiro-colunista para quem uma “... praga marxista se espalha pelo mundo”, Lobão se saiu muito bem, apesar das “... armadilhas de esquerdistas infiltrados ali para estragar uma entrevista séria” seu discurso revelara notável “independência crítica”! Entrevista séria? Esquerdistas infiltrados? Independência crítica? Não há absolutamente nenhuma independência crítica naquilo que diz, alinha-se exatamente pela unicidade do discurso adaptando-se facilmente ao seu novo ambiente de trabalho.
Mas sou obrigado, enfim, a concordar com meu xará: “o que vimos mostra bem a falência intelectual do Brasil”.
Na verdade, pseudo-intelectual!
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“A história me precede e se antecipa à minha reflexão. Pertenço à história antes de pertencer a mim mesmo”.
RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1977, p. 39.