NOTA DE APOIO AO MOVIMENTO EPPEN FEMINISTA
Prof. Dr. Rodrigo Medina Zagni
Universidade Federal de São Paulo
Há certo tempo, estava no elevador de uma universidade onde lecionava quando adentraram dois jovens, muito provavelmente alunos de graduação, de cuja conversa passei a ser compulsoriamente ouvinte. Falavam sobre alguma mulher e, em dado momento, um deles lhe dirigiu a seguinte crítica em tom de reprovação: “não acho que ela seja feminina, gosto de mulher-mulher, entende? De mulheres que agem como mulheres!” Por ajuda do destino foi uma viagem rápida até o solo e apesar dos muitos questionamentos que fiz em pensamento, para todos tinha as respostas.
Do que se trataria uma “mulher-mulher” ou “mulheres que agem como mulheres”? É evidente: de mulheres, em termos biológicos, que aceitassem (invariavelmente pela violência – expressa ou velada) aquilo que historicamente inscreve a identidade de gênero feminina na sociedade brasileira, esta que resulta por sua vez de processos de construção social, plasmados no plano da cultura e das práticas sociais, e que reduzem identidades complexas a estereótipos, um repertório de práticas e valores que expressam o que é “ser feminina” como equivalente notório de condutas de submissão e de dependência em relação ao gênero masculino, historicamente opressor.
Permitam-me uma breve digressão. Fui criado numa sociedade machista, sexista, homofóbica, racista e marcada a ferro pelo ódio de classes, motivo pelo qual não me considero muito mais tolerante que qualquer um; ocorre que a conversa me incomodou, sobretudo, por ter sido travada dentro do ambiente universitário, tendo como interlocutores dois alunos.
Eu explico o incômodo! Evidentemente as instituições de ensino superior não estão, de todo, apartadas da sociedade (por mais que algumas instituições, conscientemente, queiram e lutem arduamente para isso!); portanto, como microcosmo da realidade na qual está inserida, a universidade tende a reproduzir em seus ambientes e em menor escala problemas sociais e violências cotidianas como aqueles já mencionados acima. Mas como alguém criado, repito, num meio machista, sexista, homofóbico, racista e classista; sou testemunha viva do que pode realizar, com consciências e condutas, o poder avassalador da educação. Não estou me referindo aqui a um conceito simplista e equivocado de educação como instrumento de formação técnica para a atuação pura e simplesmente no mercado – tendo como objetivo a construção egoística de carreiras e currículos -; mas, incluindo escolas de política, economia e negócios, uma educação que compreenda o fato de que mercados (por exemplo e não por acaso!) fazem parte de um todo muito maior chamado sociedade, para a qual é preciso formar humanisticamente indivíduos capazes de ver o outro e de respeitar suas diferenças. Uma educação igualitária, emancipadora, libertária e verdadeiramente humanística tem o poder avassalador da transformação - ou melhor, deve ter -, formando indivíduos de tal forma plenos que se tornem capazes de identificar, em si mesmos, atos de reprodução dos tantos valores intolerantes que constituem nossos edifícios culturais e que comumente sequer são percebidos, porquanto a intolerância – como a violência de gênero - tenha se tornado, desde muito, signo da normalidade.
Digo isso porque, há alguns dias, novos fatos voltaram a me preocupar, primordialmente porque ocorreram numa instituição pública de ensino superior – a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) -, em seu campus de Osasco, onde funciona a Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN) e onde exerço minhas funções docentes; fatos que me movem, neste ato, a manifestar minha total e irrestrita solidariedade ao movimento “EPPEN Feminista”, vítima de atos profundamente lamentáveis e que devem nos encaminhar à reflexão crítica a fim de pensar que modelo de universidade verdadeiramente queremos e que tipo de ambiente estamos construindo.
Tratando-se de uma unidade de ensino que se encontra ainda em sua “primeira idade” (seus primeiros cursos foram instituídos em 2011), apenas recentemente o alunado reuniu condições e massa crítica para a organização de seus primeiros núcleos de luta estudantil, mas que já inclui as importantíssimas pautas do movimento negro, do movimento LGBTS (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Simpatizantes) e do movimento feminista, resultando deste a organização do movimento “EPPEN Feminista” que, há poucos dias, fez sua primeira intervenção em nosso campus.
De um dia para o outro, os ambientes da EPPEN foram tomados por cartazes com frases que começavam todas da mesma forma: “eu preciso do feminismo porque...” O intuito era esclarecedor e tinha a premente tarefa de chamar a consciência dos leitores (do gênero que fosse!) que partilhavam o mesmo espaço de convívio acadêmico, para as demandas do movimento feminista que ali se apresentava, para a existência das brutais violências de gênero e para as muitas violências diluídas nas pequenezas do cotidiano e para as quais, via de regra, não damos a atenção devida.
Nas rampas de acesso às salas da EPPEN, ao ler rapidamente alguns cartazes, pude perceber como muitos de nós que militam pela igualdade de gênero somos pegos em algumas dessas pequenezas, o que demonstra a importância da campanha: provocar a reflexão crítica e transformar consciências, mudando condutas.
Apesar das demonstrações de apoio, a misoginia machista e preconceituosa que se manifestou logo em seguida, na forma da destruição, furto e pichação (mudando as frases originais e desenhando órgãos genitais masculinos) de muitos desses cartazes – um ataque público à primeira intervenção feminista no campus! - revelou algo profundamente problemático: as práticas de reprodução da opressão sexista num ambiente cujos objetivos mais elementares resultam vilipendiados.
Para aqueles que julgam o ataque sem importância, estão muito longe de compreender sua dimensão simbólica e em que montante de violências se insere, única forma de se calcular sua real periculosidade. Por isso tentarei ser o mais didático possível!
Essa cegueira crônica é resultado do próprio processo de humanização que nos constitui no plano da cultura, logo, de nossas identidades projetivo-sociais. Isso porque, ao nascermos, temos dada apenas nossa existência biológica; no que tange ao restante, somos “tábula-rasa”! Somos paulatinamente “apresentados” ao mundo por meio de processos de humanização, responsáveis por inserir-nos nos repertórios culturais que constituem toda a complexa teia de relações sociais com as quais iremos, aos poucos, interagindo.
Nesse processo, somos inseridos num repertório de valores e morais que, de forma simbólica, nos ensinam a sermos violentos reproduzindo violências de tal forma cristalizadas como tradição que nos tornamos incapazes, durante muito tempo ou por toda a vida, de percebê-las como tal. É o que ocorre no simples ato de, ao término de uma refeição, ainda à mesa, os pais ordenarem que a menina auxilie a mãe a retirar e a lavar os pratos, frente ao menino que a tudo assiste. Papéis sociais, construídos em relações de opressão, são desta e de tantas outras formas perpetuados de maneira brutalmente desigual, pela família, pela religião, pela propaganda, pela cultura de massa e por tantos poderes que produzem, como resultado, a aceitação cultural da violência contra a mulher.
Com relação à sexualidade as diferenças são ainda mais gritantes na medida em que aos homens toda liberdade é concedida - desde que se trate de liberdades heterossexuais numa sociedade violentamente homofóbica -, e o próprio exercício delas designa sua condição de virilidade; enquanto à mulher as mesmas liberdades são vedadas, do que resulta sua condição moral superior, enquanto aquelas que ousam reivindicar ou exercer a liberdade de fazer de seu corpo o que melhor lhe convier, recai a fecha da promiscuidade.
Nosso tipo de sociedade patriarcal e machista produz o orgulho do pai ao dizer que o filho, tal qual ele no passado, afirma sua masculinidade por meio do sexo; enquanto o mesmo pai dificilmente se orgulharia da filha caso ousasse exercer a mesma liberdade, tampouco diria agir ela tal qual a mãe!
A palavra-chave, no final das contas, é essa: liberdade!
É o que fora negado, de forma violenta, nesses dias.
Mas isso para dizer apenas da dimensão simbólica desses atos de violência; pois quanto ao montante de violências nas quais se inserem, os dados são muitíssimo graves!
Muitas são as formas de violência contra a mulher, desde atos simbólicos (como os aqui descritos), agressões verbais, abuso emocional, cárcere privado, violência sexual, agressões físicas, mutilações e, no extremo, o óbito.
Basta saber que na sua expressão máxima, o feminicídio, o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) registrou, de 2001 a 2011, mais de 50 mil mortes, numa média de 5 mil mortes por ano, em sua maioria resultado de violência doméstica. Segundo o relatório “Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil”, do IPEA, a média é de 5.664 mortes de mulheres a cada ano, 472 por mês, 15,52 a cada dia e, pasmem, uma a cada uma hora e meia (supondo-se ter morrido ao menos uma mulher enquanto eu elaborava este texto, vítima de feminicídio!). Os números vêm rendendo ao Brasil o 7º lugar no ranking de países que registram este tipo de conduta (praticamente todos!).
Mais grave ainda é a situação das mulheres negras, segundo o mesmo relatório, culpadas duplamente por existirem, constituindo 61% dos óbitos de mulheres vítimas de feminicídio.
Com relação à violência sexual, a pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres”, elaborada pelo IPEA e divulgada em abril deste ano, demonstrou que 26% dos entrevistados acreditam que a culpa seja das próprias mulheres violentadas, por usarem roupas que “mostrem o corpo”!
Mulheres culpadas por terem sido violentadas? Mulheres inseguras principalmente dentro de suas próprias casas, a mercê da violência de seus parceiros ou ex-parceiros?
Não progredimos absolutamente nada para a promoção da igualdade de gênero; pelo contrário, regredimos! A “Lei Maria da Penha”, caso emblemático por ter sido considerada um avanço em termos de legislação, não promoveu nenhuma alteração, praticamente, nos índices de violência doméstica. De acordo com o “Mapa da Violência” elaborado pelo Instituto Sangari em 2012, de 1980 a 2010 o número de óbitos por feminicídio, nessas 3 décadas, subiu de 1.353 para 4.297, ou seja, triplicou! Isso porque as leis brasileiras não são capazes de proteger as mulheres de toda sorte de violências, chegando à cifra absurda de 5 mulheres espancadas a cada 2 minutos no país, de acordo com o relatório “Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado” (FPA/SESC), elaborado em 2010.
De acordo com o Banco Mundial, no mundo todo, mulheres de 15 a 44 anos correm risco maior de serem estupradas ou vítimas de violência doméstica do que de contraírem câncer, malária, morrerem em guerras ou acidentes de trânsito.
E todos nós, calados, aceitamos! E como parte dessa comunidade, que inclui alunos, funcionários e professores, não aceito e isso por um princípio elementar: o da solidariedade, expresso numa palavra de ordem comum ao socialismo: “enquanto um apenas for oprimido, todos somos oprimidos!”
Todo movimento político é dotado de contradições, isso é óbvio, e por tratar-se de um jovem movimento, certamente há críticas que podem e devem ser feitas no intuito de provocar revisões constantes de pressupostos e paradigmas. Por exemplo, vejo o perigo grave de algumas posturas reafirmarem exatamente aquilo que devem condenar: o moralismo; nefasto moralismo que durante tanto tempo castrou mulheres de suas liberdades mais primais. Ocorre que quando um movimento com o qual nos solidarizamos é atacado de forma tão vil e repulsiva, deixa de ser o momento para a crítica, porque se impõe a tarefa da luta!
O apoio de todos (o que nos inclui como professores!) é fundamental para que essas e outras lutas se fortaleçam no campus, a fim de que possamos construir um ambiente de respeito à diversidade e ao dissenso, pré-condição para que a universidade almeje seu objetivo maior: a transformação da própria realidade social! Outra forma de dizer que a luta pela emancipação de todos os gêneros, raças e classes, no ambiente da nossa escola, é tarefa obrigatória para que a universidade seja instrumento da reversão desses quadros de intolerância vigentes em sociedade.
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“A história me precede e se antecipa à minha reflexão. Pertenço à história antes de pertencer a mim mesmo”.
RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1977, p. 39.