Ruy Belo
“Um dia uma vida”
Não vazes tantas vezes vozes rente ao vento
e não escutes os pássaros nem mesmo o mar
não oiças nem sequer o vento se soprar
pois o tempo tem voz o tempo fala
Está atento abertos os ouvidos ouve
A vida é uma vasta música suave
Há uma luz lunar que ilumina o mar
e esparge pela areia pela maré cheia
o poema de espuma que lhe cabe recitar
e me fala das cinzas a que se reduz
o céu breve e restrito de uma noite
Preciso de dormir e só na pedra tumular
eu poderei poisar de verdade a cabeça
Ingresso para sempre no mais puro escuro
Fui um inveterado tripulante da memória
oiço os passos do tempo sei a minha idade
e deito-me com toda a dignidade
É inútil bater amigos inimigos a esta loisa
onde eu repouso como simples coisa
E o tempo poisa deixa finalmente de passar
“Sim um dia decerto”
Um dia não terei ninguém nunca tive ninguém
não saberei destes dias de nevoeiro no verão
quando as pessoas no ar se recortam rígidas nas silhuetas
nuvens de névoa tornam indeciso o horizonte
e a neblina nitidamente naufraga nas águas
Um dia sentirei ou pressentirei os pulsos ligados pelo aço dos anos
Ficarei horas e horas com a última perna cruzada pacificamente sentado
com a face amadurecida de luz ou corroída pela escuridão
sereno como uma superfície com a cara coberta de barba sozinho na terra
Sim um dia decerto será assim ou mais ou menos assim
e nem saberei mesmo que um dia distante
sem saber porquê achei provável que um dia decerto fosse assim mais ou menos assim
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“A história me precede e se antecipa à minha reflexão. Pertenço à história antes de pertencer a mim mesmo”.
RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1977, p. 39.